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O Brasil completará, no ano que vem, dez anos de tumulto institucional. Após as manifestações de junho de 2013, o país mergulhou em um pesadelo político que culminou no retrocesso de uma série de direitos conquistados com muito suor ao longo de sua história republicana. Paralelamente à democrática passeata em torno dos 20 centavos, organizada pelo Movimento Passe Livre (MPL), eclodiu o ovo da serpente de um movimento incivilizado, reacionário e neofascista, que gritava contra o sistema político e contra “tudo o que está aí”.
Tal sublevação popular, de coloração antidemocrática e altamente despolitizada, foi bem captada pelas elites mais retrógradas da sociedade, que se aproveitaram do barulho das massas para viabilizar uma justificativa artificiosa que extirpasse o PT do cenário político. Como sabemos, esse processo de limpeza política ocorreu via Operação Lava Jato e através do impeachment de Dilma Rousseff. As inúmeras prisões ilegais ocorridas naquele período – dentre as quais a do ex-presidente Lula – foram importantes catalisadores da tragédia que se avizinhava: a eleição de Jair Bolsonaro e sua política de degeneração da democracia e dos valores civilizatórios previstos na Carta de 1988.
À época, nós do campo progressista denunciamos todos estes eventos como verdadeiros ataques ao espírito mais valioso da nossa Constituição. O desmanche constitucional foi e tem sido profundamente estudado, seja no Brasil como no exterior, entre as ciências sociais e jurídicas.
Em nossa produção acadêmica, organizada em torno do grupo de estudos denominado Sistemas de Justiça e Estado de exceção, que é liderado pelo constitucionalista Pedro Estevam Serrano (PUC-SP), identificamos que o autoritarismo daquele momento possuía inúmeros traços que remetiam a movimentos tirânicos da primeira metade do século XX, onde sucessivos ataques às instituições serviram para instaurar ditaduras sangrentas, como foi o caso da suspensão da Constituição de Weimar semanas após à subida de Hitler ao poder na Alemanha.
Em que pese o paralelo entre o novo autoritarismo brasileiro e aquele que assolou o século XX, verificamos uma clara diferença: não estávamos mais diante de um claro golpe de Estado, mas de medidas de exceção, pontuais e esparsas, que esvaziavam o conteúdo das normas constitucionais, no interior da democracia. Foi assim que caracterizamos as prisões ilegais da Lava Jato e o próprio impeachment, que fora realizado com todas as formalidades, mas sem a ocorrência de um crime de responsabilidade, isto é, seu elemento substancial.
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Mas foi com a eleição de Jair Bolsonaro que todos aqueles elementos autoritários, que constituíam nosso objeto de estudo ao longo desses anos, não apenas ficaram cada vez mais claros, como alcançaram outro patamar. Dessa vez o ataque à Constituição não vinha mais (ou apenas) do Poder Judiciário e do Congresso Nacional, mas da própria Presidência da República, que detém em suas mãos o governo e a máquina administrativa federal. O autoritarismo do governo Bolsonaro, conhecido por todos, chamou a atenção de todo o mundo civilizado, principalmente por sua total falta de empatia com os milhares de brasileiros mortos na pandemia, como pelas inúmeras falas e ameaças golpistas.
Dentre os diversos pontos que poderiam ser analisados, um deles orbita a seguinte questão: o de quem deve ser o guardião da Constituição?
Seria o presidente da República? O Supremo Tribunal Federal? O Exército? O povo? Para responder a essa questão, que tensiona o atual debate constitucional pátrio – principalmente após o decreto de Bolsonaro que basicamente “corrigiu” o STF na condenação do deputado Daniel Silveira – façamos uma ligeira digressão à história constitucional do século XX.
A pergunta “quem deve ser o guardião da Constituição” é, antes de tudo, o título de um importante artigo escrito pelo jurista austríaco Hans Kelsen, em resposta a Carl Schmitt, jurista alemão conhecido por suas ideias autoritárias e que abertamente defendeu o Terceiro Reich. Vale dizer que o debate entre esses dois autores marcou para sempre a história do direito constitucional, tendo sido muito importante para a construção institucional da Jurisdição Constitucional do pós-guerra, como mecanismo antifascista por excelência, de proteção dos direitos fundamentais face aos arroubos populistas advindos dos chefes do Poder Executivo. Preocupado com a relevância do tema, publiquei neste ano o livro Elementos autoritários em Carl Schmitt (2022), a fim de conhecer mais do pensamento reacionário para que pudesse compreender o atual cenário.
Carl Schmitt, autor idealizador do estado de exceção, defendia que o presidente da República era o legítimo guardião da ordem jurídica, jamais uma Corte Constitucional ou o Poder Legislativo. Tal como a tese bolsonarista advoga, Schmitt entendia que o presidente da República, por ter sido eleito pelo povo, deveria guiar não apenas a política, mas também a aplicação (ou não aplicação) do Direito, dentre os quais incluem-se os direitos fundamentais.
A ideia autoritária era a de que o chefe do Executivo possuía uma íntima ligação com as massas. Essa ligação supostamente legitimava o presidente a ser uma espécie de poder moderador do Estado, figurando não como um presidente limitado constitucionalmente, mas como um Leviatã sem qualquer tipo de freio institucional. Vale lembrar que do argumento de que haveria uma ligação afetiva entre a massa e o presidente da República, culminou no conceito do Führer (líder), como instância política suprema, espécie de ponto convergente e gravitacional de todos os desejos políticos latentes, autoritários ou não.
No final das contas, a tese de que o presidente deve ser o guardião da Constituição é a defesa de um Estado autoritário, em que o poder político está concentrado nas mãos de um soberano, e que esse poder supremo deve prevalecer diante das limitações do Direito, controlando-o e subjugando-o.
Hans Kelsen, por outro lado, percebendo o perigo das afirmações de Schmitt, propôs o inverso: a tese de que um Tribunal Constitucional fosse o baluarte e revisor final da Constituição. A ideia kelseniana era defender que o Direito controlasse a política, evitando assim o acúmulo de poderes nas mãos do Executivo e do Legislativo e a consequente supressão da Constituição e dos direitos fundamentais por escolhas majoritárias ou inflamadas por ideologias radicais. E ainda que o Poder Judiciário acumulasse poderes, é imperioso compreender que o manejo desses poderes se dá a partir de um órgão inerte, que não administra ou governa, que não é eleito e, por isso mesmo, que se encontra muito mais distante do sabor das paixões políticas e dos delírios ideológicos do que o chefe do Poder Executivo.
Se olharmos a história, veremos que Carl Schmitt venceu a batalha no campo dos acontecimentos, já que o nazismo derrubou a República de Weimar.
Esse mesmo debate se reproduz hoje no Brasil diante dos nossos olhos, como se uma valiosa literatura de décadas e décadas, bem como inúmeros precedentes históricos e judiciais, não estivessem aí para iluminar a consciência de políticos desejosos de construir e trilhar um caminho mais democrático e humanista. Entretanto, é possível verificarmos que a existência de tais polêmicas simplesmente ignora o que já fora produzido a respeito. Ou seja, há uma constante tentativa de rebaixar o nível da discussão para que ideias autoritárias sejam colocadas como aceitáveis ou até mesmo mais bem elaboradas que os séculos de construção do constitucionalismo ocidental.
Dentre as falácias ocultas em argumentos manipuladores, está aquele em que se invoca o parágrafo único do artigo 1º da Constituição para afirmar que “todo poder emana do povo”, como uma forma deturpada de interpretação constitucional que no fundo quer dizer “se o povo exigir que o presidente (eleito pelo povo) feche o Supremo Tribunal Federal, uma vez que é nosso Führer, isto é, nosso legítimo e verdadeiro representante”.
Essa interpretação fraudulenta da Constituição ignora o resto da frase que compõe a mesma norma citada, quando ela diz que todo esse poder que emana do povo é e deve ser exercido “por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Ou seja, nossa Constituição institui uma democracia indireta, que se realiza pelas normas constitucionais e por meio das instituições, e não apenas de forma direta pela população. Vale dizer: ainda que 100% da população brasileira defenda a tortura, a Constituição veda tal possibilidade (art. 5º, III, CF), sendo dever do Supremo Tribunal Federal anular leis com esse tipo de conteúdo. Esse ferramental institucional é produto dos ensinamentos arduamente aprendidos por meio dos imperdoáveis erros humanitários cometidos por regimes autoritários ao longo da Segunda Guerra Mundial.
Mas voltemos à nossa Constituição, pois, já que o poder emana do povo “nos termos desta Constituição”, é bom também relembrar que o artigo 102 da Carta Política, ao referir-se explicitamente ao debate travado entre Kelsen e Schmitt, impõe ao Supremo Tribunal Constitucional a missão de “guarda da Constituição”. Assim, o Supremo Tribunal Federal, além de ser o legítimo e último intérprete do arcabouço normativo pátrio, ainda tem o dever de garantir que a política esteja submissa ao império do Direito e não o inverso. Com efeito, todo ato de Bolsonaro que empurre contra a parede as decisões do Supremo Tribunal Federal tem exatamente essa finalidade: eliminar da ordem constitucional brasileira seu legítimo salvaguarda e defensor.
Talvez somente assim, com a mesma estratégia adotada pelos nazistas para invalidar e suspender a aplicabilidade da Constituição de Weimar, os direitos e garantias constitucionais possam ser, de uma vez por toda, revogados e os inimigos políticos do presidente da República possam ser finalmente perseguidos e eliminados de seu caminho.
O Brasil, que é uma democracia recente, já conviveu diversas vezes com fenômenos de tal natureza, como no Estado Novo (1937 – 1945) e o AI-5 (1968), quando até mesmo o habeas corpus, remédio heroico que protege a liberdade dos cidadãos diante da violência estatal, fora eliminado da ordem jurídica.
Eis que agora, depois de tantas décadas e lutas pelo aperfeiçoamento e manutenção da democracia, é absolutamente indispensável que tanto as instituições como a sociedade civil consigam reverter o triste quadro de risco e ameaça que a Constituição cidadã tem sofrido nos últimos anos.
E repita-se: o debate em torno de “quem deve ser o guardião da constituição” não é um debate verdadeiro, mas retórico: é uma artimanha autoritária, uma isca despótica que visa confundir aqueles que realmente presam pela democracia. Essa questão desse debate não é uma questão, pois já fora respondida no correr do século XX, quando as constituições do pós-guerra protegeram seus regimes democráticos pelo fortalecimento dos Tribunais Constitucionais e não dando mais poderes aos chefes do Poder Executivo.
A democracia que venceu o nazismo e que, como diria Ronald Dworkin, levou os direitos a sério, já fez sua escolha ideológica: a de que tribunais constitucionais são os guardiões das constituições e a de que o Direito subjuga, limita e racionaliza a política, nunca o oposto.
Rômulo Monteiro Garzillo é advogado, mestre em Filosofia do Direito pela PUC-SP e professor de Direito Constitucional na Uninove. É autor do livro Elementos autoritários de Carl Schmitt, publicado pela Editora Contracorrente em 2022.